segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Escarlate

Resolveu se livrar do cadáver no armário. Já fazia tempo que insistia guardá-lo. Estava tão bem escondido que nem o notou. Mas o corpo que ali jazia, já começava a cheirar. Já não podia mais disfarçar, os vizinhos já estavam a notar sua mórbida devoção ao fúnebre, que era alimentada diariamente pelas constantes visitas póstumas que o defunto fazia, ao desaparecer pelas madrugadas. Ludibriando com palavras tão sem sentido quanto ocas, recriando algo que já não existia mais...Algo sobrenatural ainda a rondava, obsediava. Mãos gélidas, as costas arrepiavam. Abraços de sufoco, a morte respirava em seu pescoço. Onipresente da forma mais etérea, ocupava mais espaço que o ar em seus pulmões. Apartamento vazio, janela aberta ondulando as cortinas de linho. Seis garrafas do mais fino vinho. Um fantasma, dois silêncios, três delírios. Mais 30 comprimidos e outro suspiro...Um corpo sem vida, sem calor, que mesmo morto, só fazia doer. Agonizando em busca da misericórdia, deu-se a decisão que lhe pouparia desgostos. Alçou vôo de encontro aquelas luzes que brilhavam vermelhas, pelas coberturas inferiores...





























Sentiu gosto do vento frio no rosto. Sentiu o vácuo penetrando seu ser, subindo sua barriga, implodindo no peito relaxando seus os músculos...e riu de forma salaz...das consequências que não poderiam mais lhe pesar! Pela primeira e última vez, finalmente pôde mergulhar e repousar, com sua leveza peculiar e ambígua, sobre lençol quente e úmido, de sua cor preferida.


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