sábado, 24 de abril de 2010

Máscara alva, imaculada e insustentável

Levantando a poeira que tentam varrer pra baixo do tapete, sujando os belos muros dos palácios da decência e da moral, assim como os lençóis pendurados no quintal de dona Maria - moradora de mais uma entre tantas comunidades do Rio - que está sujo de sangue e pólvora. É pra ser sujado mesmo, pois segundo o governo do estado, este quintal, esta casa, nem eram pra estar lá.

Dona Maria está em área de risco, ou em uma área de invasão da bela mata atlântica do Rio, responsável pela bela fama de paraíso verde em meio a àrea urbana. Dona Maria é dona de um terreno que pertence ao governo, que é reservada para apreciação dos nossos turistas, cheios de Euros e Dólares que entram nos caixas, cuecas e meias das autoridades.
Só quem não vê a cor nem os frutos deste dinheiro são as Maria’s e José’s que mesmo morando em locais irregulares pagam contas de luz, recebem cartas e alguns até pagam IPTU.
Para evitar essa expansão, há muros sendo construídos para cercar as comunidades e com a desculpa de “proteger” a floresta. A dignidade de quem está dentro do muro é a única que não é preservada. O projeto do que eu chamo de emparedamento das favelas vai começar pela zona sul. Seria coincidência?!
No que isso difere de outro muro, que foi construído em 13/08/61? Ambos separam dois blocos sociais. Respeitando nas devidas proporções, a influência na vida de cada parte separada e a gravidade da construção de cada muro, quando falo que essas duas paredes têm algo em comum, eu falo do sentido de todos os muros feitos, o simbolismo deles, a separação, a delimitação de território, o fato de que todo muro segrega ou esconde o que cerca, do que está em volta. Não se trata mais de proteção, mas da materialização da exclusão que já existe há muito tempo.
Longe de mim incentivar a ocupação irregular, mas de ver a raiz do problema, que está sendo resolvido de forma incorreta.
O que o governo se esforça tanto pra esconder gastando R$ 40 milhões (segundo a fonte, financiado pelo Fecan - Fundo Estadual de Conservação Ambiental)? Porque ao invés de financiar a “cerca das favelas”, eles não financiam um projeto de habitações, para que estas pessoas possam ser retiradas e readaptadas, num lugar digno e bem estruturado?
Com toda certeza construir paredes é bem mais barato, mas até onde é eficaz? No que isso resolve os problemas das famílias que moram lá? Alguns membros das comunidades dizem que não foram afetados com esta novidade. A maioria discorda e até protesta. Será que estão todos conscientes do que se trata simbolicamente essa mudança?!
Eu vejo muito interesse político, vejo olimpíadas e copa do mundo se aproximando, vejo casas pintadas de verde-água de um lado da favela e brancas do outro, vejo ações paliativas com a finalidade de tornar a cidade “apresentável” e “limpa”.
O objetivo é fazer da cidade uma parede branca, como um apartamento com a decoração clean, dessas que as imobiliárias e construtoras vendem como água ou cerveja, em todas as esquinas.(Falando nisso exploração imobiliária é um assunto que deve ser discutido, mas que dispensa comentários nesse post.)
Só com um desastre como este, que assolou nossas queridas “Cidade Sorriso” e "Cidade Maravilhosa", assim como o resto do estado do RJ, pra que a prefeitura acorde e veja o quanto é urgente parar de pintar a fachada das casas, parar de tapar o sol com a peneira e entender que ação em prol do desenvolvimento não é “minimizar o impacto visual” e sim minimizar o impacto do abismo social em que vivemos.
Vem a chuva e leva tudo, vem a imprensa e explora a desgraça de todos, vem os políticos (I)responsáveis lavando as próprias mãos com a água que ainda escorre de muitas casas e olhos.
Li um texto da Márcia Tiburi - pra quem nunca ouviu falar, ela é filósofa, artista (no sentido real da palavra) e escritora - e achei muito pertinente falar sobre o assunto que ela levantou.

Pichação
O que realmente as pessoas devem considerar desrespeito?Um muro pichado ou a falta de dignidade com que essas pessoas, mais humanas do que muita gente que cresceu com todo suporte necessário, vivem?
Como um protesto de quem não tem voz na mídia, não tem tela nem espaço (em todos os sentidos) pode ser julgado da forma que é?
Vemos a cidade cheia de grafites e piches, às vezes uns seguidos dos outros, alguns formando palavras, outros são desenhos, frases, reflexões e alguns são apenas assinaturas de quem só deseja dizer que está aqui entre nós, que existe.
São pessoas que se cansaram, que não querem, nem aceitam mais serem negligenciadas, que clamam por alguma atenção (Atenção merecida na minha opinião).
São os artistas que insistem em expor, sem luzes, galerias ou glamour. Sua inspiração é a vida, o que vêem e vivenciam por uma condição que lhes foi imposta.

Não vou falar da pichação em si, pois a Márcia Tiburi já fez isso lindamente no texto que coloquei abaixo. Quero falar de arte como um reflexo rebuscado e sincero da vida, quero expor o que penso, quero conseguir uma forma mais bela de traduzir o grito interno que dou todos os dias, quando passo na rua vendo indigentes, sinto que talvez assim minha vergonha me sirva de algo, fazendo com que um dos monstros que me assombram seja exorcizado, mesmo que por um momento.
Em que esses meninos que expõem em muros são diferentes de mim? Quase tudo.
O que temos em comum? A mesma necessidade de falar mesmo sem a certeza de realmente estar sendo ouvido.
Ações falam mais que palavras, entretanto, muitas vezes palavras se transformam ou inspiram ações. Daí vem a idéia de um filme sempre ser baseado em um roteiro previamente apresentado e não em uma cena filmada ou num pré-trailer.
Porque não querem ver e ouvir o que essas pessoas têm a dizer? Pra que essa necessidade de homogeneizar, rotular e marginalizar tudo que não está nos moldes padronizados pela sociedade?
Particularmente considero a sociedade em que vivo ainda muito atrasada, limitada, preconceituosa e alienada. É por conta dela que ouvimos e repetimos os termos dança de rua, arte de rua.
Deixo claro que falo em primeira pessoa do plural, me incluindo na lavagem cerebral dos padrões quadrados de uma educação clássica ou religiosamente rígida, que pode ter sido dada ou pela escola, ou pela mídia ou por pais.
Rotular tais movimentos artísticos como de rua, seriam apenas formas de diferenciar estilos ou uma tentativa de apartar o que é feito formalmente, do que é feito em grande parte pelas periferias que não tem acesso ao clássico, ao erudito? Dança não é mais dança, arte não é mais arte? Criança de rua também é criança, que nem a sua.
Manifestações em forma de música como o rap, em forma de dança como o hip hop ou em forma de arte, como o grafite, se resumem a sentimentos desmascarados.
Assim como os piches traduzem uma revolta. Fecharemos nossos olhos para mais esse grito silencioso? É feio, a realidade é feia e nós procuramos o tempo todo embelezá-la para sofrer menos, para se chocar menos. Será que estamos todos loucos? Precisamos deste choque mais do que nunca, para que possamos cobrar quem pode mudar algo.
Ano de eleições não serve apenas para reclamar que ninguém presta, que ninguém faz nada. O voto é nosso único poder sobre o destino do local onde moramos, sobre os impostos que pagamos em tudo que compramos, em nossa segurança e futuro. Votar nulo ou em branco é mais do que se abster, se alienar, é perder todo o direito que o cidadão têm de cobrar e reclamar. Saber quem estamos empregando é essencial. Somos empregadores daqueles que nos roubam. Cabe a nós lembrar de quem devemos exigir respeito e honestidade.
Perder a fé na humanidade talvez seja como perder a fé em si mesmo. De fato todos somos sujeitos ao erro, proposital ou não, todavia também acredito que todos são passíveis de uma imensa capacidade de regeneração, de união e desse espírito humanitário que nos move em direção à solidariedade.
Não subestimem o poder da voz, do protesto. Não tem porque enfeitar a vida para que pareça bela aos olhos, fingir que não tem ninguém sofrendo à nossa volta. É necessária a construção dessa beleza, para que seja real e palpável.

Música que provavelmente o prefeito do Rio nunca ouviu (se ouviu ignorou ou não entendeu).


Favela Amarela
Autores: Jota Júnior e Oldemar Magalhães
Favela amarela
Ironia da vida
Pintem a favela

Façam aquarela
Da miséria colorida
Favela amarela

Favela amarela
Favela amarela

Trecho de Periferia é Periferia - Racionais Mc's

"...O sistema manipula sem ninguém saber
A lavagem cerebral te fez esquecer que andar com as próprias pernas não é difícil
Mais fácil se entregar, se omitir
Nas ruas áridas da selva
Eu já vi lágrimas demais, o bastante pra um filme de guerra

Aqui a visão já não é tão bela...
Não existe outro lugar...
Periferia...Gente pobre..."



Vídeo do epsódio dos simpsons no Brasil.
A visão é exagerada? É uma forma de desrespeito ou protesto?
Humor negro!
Indico o vídeo porque achei interessante uma fala da Lisa:
"Mãe essas são as favelas! O governo pintou elas de cores vivas só para que os turistas não ficassem ofendidos."
Me pergunto de novo. Será tão deturpada assim a visão que eles têm no exterior, do que acontece aqui?




Em tempo, recomendo:

Texto
qui, 22/04/10
por marcia.tiburi |
Como a minha caixa de emails já lotou de tantas contestações e aprovações sobre meu posicionamento hoje no Saia Justa quanto à questão da Pichação, decidi postar aqui um artigo que publiquei na Cult no ano passado sobre o meu ponto de vista. Para que o debate continue com vigor. Estamos precisando.
Pensamento PiXação
Para questionar a estética da fachada
A revolta geral da sociedade contemporânea contra a pichação se ampara na hipótese de seu caráter violento. Usarei a expressão pixação, com X, para tentar tocar no X da questão. A estética da brancura ou do liso dos muros, hegemônica em uma sociedade que preserva o ideal da limpeza estética, dificulta outras leituras do fenômeno da pixação. O excessivo amor pela lisura dos muros, a sacralização que faz da pixação demônio, revela enquanto esconde uma estética da fachada.
Toda estética inclui uma ética, assim a da fachada. Fachada é aquilo que mostra uma habitação por fora; pode tanto dar seqüência ao que há na interioridade, quanto ser dela desconexo. É da fachada que se baste por si mesma à medida que lhe é próprio ser suficiente aos olhos. A estética da fachada que defende o muro branco é a mesma que sustenta a plastificação dos rostos, a ostentação dos luxos no “aparecimento geral” da cultura espetacular, no histérico “dar-se a ver” que produz efeitos catastróficos em uma sociedade inconsciente de seus próprios processos.
Nesta São Paulo do começo de século 21 não é permitido cobrir “fachadas” com propagandas e outdoors. A proibição, ainda que democrática, produz um novo efeito de observação da cidade. Tornou-se visível o que se ocultava por trás do “embelezamento” capcioso sobre um outro cenário. A obrigação do padrão do liso é efeito da democracia que, no entanto, flerta com sua manutenção autoritária. É o desejo governamental da neutralidade e da objetividade no espaço público o que deve servir de cenário à vida na cidade. Governar é no Brasil a habilidade de comandar a fachada que na administração paulistana sai do símbolo para entrar na prática mais imediata do cotidiano. A vontade de fachada é, afinal, uma vontade de poder compartilhada por toda a cultura em todos os seus níveis.
A pixação é o contrário do outdoor, ainda que compartilhe com ele a proibição de aparecer no cenário urbano comprometido pelo governo com uma neutralidade que serve à mesma ocultação de carroceiros e outros excluídos. Ampara-se no olhar burguês cego para mendigos e crianças abandonadas nas ruas. Enquanto o outdoor pode se sustentar no pagamento das taxas que o permitem, a pixação não alcança nenhuma autorização, ela está fora das relações de produção. O que o outdoor escondia era muitas vezes a própria pixação, enquanto a pixação não esconde nada, ela é o que se mostra quando ninguém quer ver sendo meramente compreendida como “ofensa” ao muro branco. Anti-capitalista, a pixação não se insere em nenhuma lógica produtiva, ela é irrupção de algo que não pode ser dito. Sem pagar taxas, o pichador exercerá uma espécie de lógica da denúncia. Mas quem poderá perceber?
Não é possível negar o direito ao muro branco ou liso em uma sociedade democrática, na qual está sempre em jogo a convivência das diferenças. O direito ao muro branco é efeito da democracia. Mas a questão é bem mais séria do que a sustentação de uma aparência ou de um padrão do gosto. A pixação é também um efeito da democracia, mas apenas no momento à ela inerente em que ela nega a si mesma. Ela é efeito do mutismo nascido no cerne da democracia e por ela negado ao fingir a inexistência de combates intestinos e velados. A pixação é, neste sentido, a assinatura compulsiva de um direito à cidade. Um abaixo-assinado, às vezes surdo, às vezes cego, pleno de erros, analfabeto, precário em sua retórica, mas que, em sua forma e conteúdo, sinaliza um retrato em negativo da verdade quanto ao espaço – e nosso modo de percebê-lo – nas sociedades urbanas. Espaço atravessado, estraçalhado, pela exclusão social.
A pixação é uma gramática que requer a compreensão da brancura dos muros. O gesto de escrever só pode ser compreendido tendo em vista que todo signo, letra, palavra, investe-se contra ou a favor de um branco pressuposto no papel. O grau zero da literatura é esta luta com o branco. A escrita é combate contra o branco, negação do alvor fanático, como o pensamento é sempre oposição e negação do que se dispõe como evidente, convencional, pressuposto. Por outro lado, a escrita é abertura e dissecação do branco, lapidação do branco pelo esforço da pedra, mas nunca sua confirmação, nunca é a ação da borracha, do apagamento, da camada de tinta que alisará o passado, o que desagrada ver. Sua lógica é a do inconformismo infinito. Imagine-se uma sociedade em que o papel não fosse feito para a escrita, em que as superfícies brancas de celulose não sustentassem idéias, comunicação, expressão, afetos, anseios, angústias. Imagine-se uma sociedade em branco e começar-se-á a entender porque a pixação nas grandes cidades é bem mais do que um ato vândalo que, para além de ser uma forma de violência, define a cidade como um grande livro escrito em linguagem cifrada. O pichador é o mais ousado escritor de todos os tempos. Diante do pichador todo escritor é ingênuo. Diante da pixação a literatura é lixo.
A Cidade como Mídia
Uma leitura da pixação que veja nela a mera ofensa ao branco perderá de vista a negação filosófica do branco que é exercida pela pixação. A pixação eleva o muro a campo de experiência, faz dele algo mais do que parede separadora de territórios. Mais que propriedade invadida é a própria questão da propriedade quanto ao que se vê que é posta em xeque.
A pixação é o grito impresso nos muros. Ação afetivo-reflexiva em uma sociedade violenta que não aceita a violência que advém de um estado de violência. Ela é a marca anti-espetacular, o furo no padrão da falsidade estética que estrutura a cidade. É a irrupção do insuportável à leitura e que exige leitura para a qual a tão assustada quanto autoritária sociedade civil é analfabeta. E politicamente analfabeta.
Em vez do gesto auto-contente, o que a pixação revela é a irrupção de uma lírica anormal. A Internet com seus blogs (horrendos, bonitos, mais bem feitos ou mais mau-humorados) é o seu análogo perfeito. A pixação revela o desejo da publicação que manifesta a cidade como uma grande mídia em que a edição se dá como transgressão e reedição onde o pichador é o único a buscar, para além das meras possibilidades de informar ou comunicar, a verdade atual da poesia, aquela que revela a destruição da beleza, o espasmo, a irregularidade, a afronta, que não foi promovida pela pixação, mas que ela dá a ver. Em sua existência convulsa a pixação é a única lírica que nos resta.

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